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Papo cabeça: arquiteto faz manifesto sobre Arquitetura Híbrida

A arquitetura hoje pode ser estudada e trabalhada com uma condensação de sentidos. Com o avanço da tecnologia, nossos sentidos naturais se perderam em meio a programas de última geração, que são utilizados em larga escala para projetar, conceituar e produzir. Mesmo havendo mais facilidades para trabalhar e estudar tudo sobre a área, será que a arquitetura contemporânea está sugando ao máximo o que podemos dar? Hoje usamos a visão e a audição como recursos auxiliares aos artefatos tecnológicos, mas e os outros sentidos? Qual o espaço que eles exercem na arquitetura atualmente?

Confira um excelente texto do arquiteto Jeferson Pertile Queiroz acerca do tema e tire suas próprias conclusões.

Frases chaves

  • Os sentidos são a chave do espaço arquitetônico a ser construído.
  • A visão e a audição hoje são os sentidos socialmente privilegiados, enquanto os outros (paladar, olfato e tato) são considerados resquícios sensoriais arcaicos.
  • Devemos examinar de maneira crítica o caráter da visão que atualmente predomina em nosso mundo. Desafiar a hegemonia da visão.
  • O predomínio dos olhos e a supressão dos outros sentidos tende a nos forçar à alienação, ao isolamento e à exterioridade.
  • A arte (arquitetura, design, pintura, escultura e etc) da visão tem nos proporcionado edificações instigantes, mas não promove a conexão humana ao mundo.
  • A arquitetura moderna abriga nossos olhos e intelecto, mas deixa desabrigados nossos corpos e demais sentidos, bem como memória, imaginação e sonhos.

A invenção da representação em perspectiva tornou os olhos o ponto central do mundo perceptual, bem como do conceito de identidade pessoal. A chegada da tecnologia e imagens tridimensionais geradas no computador por programas cada vez mais complexos, fez com que o “olhar” se distanciasse ainda mais, afastando definitivamente o corpo e os demais sentidos do processo criativo e do contato humano, gerando novas realidades não somente virtuais, mas uma falsa inserção do indivíduo em realidades desprovidas do ser em sua totalidade.

A mão é uma extensão não só do corpo, mas dos sentidos da pele e da mente. O traço, a mão e o seu envolvimento no processo criativo, a sua utilização na confecção de maquetes físicas e a interação dos demais sentidos além da visão neste processo ao perceber os sons da lixa, do material sendo cortado, o cheiro da cola, a textura, densidade e peso dos materiais envolvendo os sentidos em todo processo de criação é substituído pelas imagens eletrônicas em que somente o olhar alcança a uma distância fria do mouse. A confecção da maquete física substituída pela impressão em 3D isola definitivamente os outros sentidos de todo processo criativo dando à visão a liderança inconteste.

A visão é o único sentido capaz de assimilar a velocidade com que as imagens circulam no mundo tecnológico. Porém, isto nos põe num espiral perpétuo de simultaneidade presente. O tempo e o espaço se confundem com a velocidade de imagens geradas e absorvidas pelos nossos olhos — web, pinterest, instagram, facebook, snapchat, whatsapp e etc.

Isto faz com que lancem sobre a arquitetura, design e etc. um olhar narcisista, tornando o ato projetual um meio de autoexpressão ou um jogo intelectual. Este mesmo modo promove a visão niilista do olhar humano, causando isolamento e a alienação sensorial e mental. Ao invés de reforçar a experiência do mundo integrada e centrada no corpo, o processo de criação niilista desconecta e isola o corpo.

Mas não se trata de negar ou desacreditar a importância e os benefícios das criações utilizando programas tridimensionais, mas sim, ativar e integrar os demais sentidos no processo criativo pré-concepção projetual, aumentando as percepções sensoriais e cognitivas.

Até o século XVII, audição, paladar e olfato estavam no topo da pirâmide dos sentidos. Após o advento da geometria e do mundo das formas, a visão passou a ter um papel principal; é o surgimento do ego ocasionado pela hegemonia da estética do olhar.

A delusão causada pelas afirmativas: “estamos conectados com o mundo” ou “nunca estivemos tão próximos” alimenta uma falsa conexão entre os indivíduos sem a experimentação real do mundo através dos sentidos.

O mundo focado na realidade bidimensional fotográfica nos faz sentir como se o mundo estivesse mais disponível que na realidade está. Esta falsa realidade em que o presente parece ser contínuo e perpétuo confunde a mente quanto ao estado de impermanência, temporalidade e espacialidade.

A arquitetura contemporânea, bem como design, que foi construída após a modernidade do pensamento Corbusiano, reforça e dá à visão o papel central no processo de construção do espaço-objeto a ser construído. “O homem vê a criação da arquitetura com seus olhos, que estão a 1,70 metros do solo”, ou ainda, “a arquitetura é o jogo sábio, correto e magnífico dos volumes reunidos sob a luz”, define de maneira inquestionável a arquitetura dos olhos.

Aliado a isto, a arquitetura desenvolvida com a utilização de materiais tecnológicos cada vez mais desprovidos de tatilidade, inflexíveis à mudança, sem transmitir sua essência ou idade, nos traz a sensação de atemporalidade contrastando com os materiais possíveis de envelhecimento e desgastes naturais, afastando cada vez mais o ser, que é humano e impermanente, de uma arquitetura aparentemente atemporal. O indivíduo deixa de perceber o espaço com o corpo, deixa de se identificar com o espaço que o cerca além do enfraquecimento da experiência com o tempo.

Se, por um lado, há uma corrente que busca reutilizar os materiais, seja com suas características e formas atuais ou modificadas, beneficiando com isso a cadeia ecossistêmica sustentável, por outro, há uma corrente que promove a inserção de novos materiais com vida útil eterna comparado ao tempo de vida humana na terra. Esta inserção de alta tecnologia empregada aos materiais, alterando sua durabilidade e resistência, contrapõe com a capacidade perceptiva da mente moderna do ser humano.

A mente humana buscará sempre, através do sentido da visão, materiais que possuam brilho, memória incrustada no DNA primitivo de nosso hipocampo, associando a imagem que brilha à característica da água, elemento indispensável para continuação da espécie. Este condicionamento induzido afasta cada vez mais os demais sentidos e sua capacidade de conhecer o mundo a sua volta, construindo materialmente uma realidade idêntica à projetada pela mente, dominada pelo sentido da visão.

É preciso resgatar a inserção de todos os sentidos. O indivíduo se transforma com o abrigo a sua volta, se identifica e iguala suas rugas às trincas e rachaduras da parede, envelhece e se desgasta como os materiais do espaço que o cerca. A arquitetura tem que ser uma extensão do nosso corpo e como ele, deixar transparecer suas marcas do tempo e o sentido de impermanência, como a hera que muda, destas que sobem pela parede e tomam conta da casa, uma hora as folhas estão verdes como a videira, com o tempo mudarão para o amarelo, para o vinho e então cairão todas no inverno revelando galhos secos como artérias na parede. Parecem sem vida, mas é a vida que se resguarda a espera, a casa alterna seu humor e temperamento assim como o indivíduo que a vive, esta inconstância nos renova e nos lembra que temos ciclos, e que que temos que aceitar as mudanças, nem boas nem ruins, apenas mudanças. Podemos estar introspectivos sem estarmos tristes, eufóricos e radiantes sem precisarmos motivo para tal, assim como a hera que da impermanência à parede. Agora está verde, vida, mas virá o amarelo-saudade, o vinho-sabor e os galhos secos-impermanência. E novamente renascerá vida-verde, não há novidade, está ali mostrando o tempo todo que o ser pode ressurgir e cada etapa é a etapa em si, que estamos prontos, que devemos nos aceitar em todas nossas faltas, em nossas imperfeições e qualidades.

O espaço é o reflexo do ser que o habita.

O indivíduo precisa de todos os sentidos para ter uma experiência multissensorial. Tem de estar em estado de atenção plena para perceber que o tato é o único sentido capaz de nos dar a sensação de profundidade e que a visão revela o que o tato já sabe. Enquanto a visão alcança os objetos, o ouvido recebe. Esta interdependência sensorial, esta troca, só é sentida com todos os sentidos alertas.

As edificações não reagem ao nosso olhar, mas devolvem o som aos ouvidos do bater de uma porta; e à textura, ao tato e à pele, o cheiro de seus porões e sótãos.

De certa forma os sons foram silenciados ou modificados pela arquitetura moderna e contemporânea através de seus vidros espelhados e materiais opacos, ou pela eliminação quase completa de percepção sensorial nos shoppings centers e espaços públicos pela música de seus alto falantes.

A arquitetura moderna tornou cegos nossos sentidos.

A arquitetura é a arte de nos reconciliar com o mundo, precisamos experimentar o mundo com nosso corpo, sentidos e mente. O processo criativo precisa ser um reflexo de nossos sentidos. Se estes estiverem cegos, mudos e alterados, criaremos um mundo com esta realidade de torpor. O mundo moderno desconectou o corpo e todos os sentidos, com exceção da visão, ao mundo que o cerca. Vivemos aprisionados por invólucros que nos dão a falsa sensação de segurança e a transição entre os espaços. Se antes o homem buscava transpor o caminho utilizando suas pernas, ou sobre um animal de transporte, hoje utiliza, cada vez mais, meios que os separam do contato com o meio edificado ou urbano. Deslocam-se de seu apartamento por elevadores ou escadas, artérias dos edifícios, mantendo-se presos à interioridade, seguros da caixa que os cerca, mas os isola, suprimindo todos os sentidos no trajeto, isolando a possibilidade de interação social. Descem ao subsolo da garagem e entram em seus veículos. Movimentam-se pela cidade em seus carros, trens, metrôs, ônibus, acessam seus edifícios de escritórios e novamente vestem-se de cabines de elevador e por fim suas salas, que os manterão em uma temperatura condicionada, indiferente ao tempo lá fora; dando ao seu corpo uma sensação confusa de falso conforto, isolando-se definitivamente da possibilidade de experimentação através das sensações de seus corpos. Até que chegue a noite e o caminho inverso é percorrido.

A bicicleta, e os rearranjos urbanos pré modernidade, estão devolvendo ao homem a possibilidade de interação aos sentidos.

Novamente, não se trata de negar ou deixar de usufruir dos confortos e facilidades da modernidade, mas sim, criar condições e intervalos sensoriais reais para que o indivíduo retome os sentidos. Algumas empresas emulam estes ambientes em seus próprios espaços edificados, dando oportunidade das pessoas relaxarem, interagirem ou isolaram-se ao descanso, mas novamente, está se criando uma falsa realidade, sem o contato com a natureza e os elementos que à compõe, que possam trazer luz aos sentidos e abrir canais perceptivos de memória emocional, criativa e social.

Vivemos nos espaços projetados por nossa mente, usamos objetos projetados por nossa mente, e esta se alimenta através dos sentidos. A porta de entrada de nossa mente é a nossa percepção sensorial.

Por isso estudamos a mente, não somente através de seus processos neuroquímicos, mas a base dos cinco agregados que formam todos os seres humanos. Através das técnicas de Meditação, Yoga, Reiki, Constelação, Chakraterapia e outros, (sem vínculo religioso) será possível desenvolver a percepção, visão, expressão, sentimento, ação, instinto e identidade para que o indivíduo reaprenda a perceber, evoluir, se comunicar, apreciar, fazer, reagir e ser através da reconstrução da percepção sensorial de todos os sentidos: visão, olfato, audição, paladar e tato.

As técnicas de reconstrução do caráter sensorial darão ao indivíduo experimentador do espaço possibilidades de interagir e modificar o espaço urbano e construído a sua volta. As técnicas de desobstrução da mente e corpo sensorial propiciarão ao ser criativo a possibilidade de utilizar todos os sentidos no processo de criação, isto tornará o processo criativo fluído, prazeroso, e o resultado um reflexo do ser que cria, alterando a realidade imposta a sua volta.

Somente surgirá uma Arquitetura dos Sentidos, voltada à reinserção do ser ao espaço habitável e ao espaço urbano quando as percepções sensoriais estiverem em vibração com os demais elementos fluidos da natureza.

A Arquitetura da Mente apenas será acessada quando a Arquitetura dos Sentidos estiver com fluxo desobstruído e constante, revelando assim a verdade como ela é: uma arquitetura feita para o ser, para ser vivida, apreciada e em equilíbrio com a natureza, o ser que a habita e a tecnologia.

E só então será revelada a Arquitetura dos Espaços.

O ser humano é formado pelos mesmos elementos materiais que qualquer outro material existente na natureza. Tudo que há no universo é formado por estes materiais e suas características: água (fluidez, coesão), terra (solidez, peso), ar (gaseiforme, movimento) e fogo (temperatura).

Toda matéria existente no universo, inclusive o ser humano, é formado por partículas subatômicas.

Porém, o ser humano, além da matéria, corpo físico, possui outros quatro agregados que o difere de qualquer outro ser conhecido no universo, que são: consciência e cognição; percepção e reconhecimento; sensação; e reação, condicionamento mental.

Quando todos esses cinco Agregados e estes quatro Elementos Materiais estão alinhados às características da Existência, de que somos impermanentes e interdependentes (entre seres e tudo que constitui o universo), percebe-se o desbloqueio dos canais sensoriais e o filtro causado pela alimentação incorreta, inadequada e/ou insuficiente dos sentidos desativa o filtro turvo da mente, fazendo com que esta então perceba o mundo e a realidade como ela realmente é.

Esta percepção correta, aplicada ao processo criativo, resulta na Arquitetura dos Espaços ou modifica o Espaço construído.

Desta forma a Arquitetura dos Sentidos, a Arquitetura da Mente e a Arquitetura dos Espaços, dão por fim existência uma Arquitetura Híbrida: onde todos os elementos sensoriais, materiais, agregados e real existência do ser se manifestam, onde o ecossistema de negócios se configura.

Fonte: Medium | Imagens: Bruno Queiroz